Há dois lugares em que se criam conflitos desnecessários da fé: um é na cabeça das pessoas onde se perde tempo pensando sobre um assunto da fé polêmico, outro é nas redes sociais e sites. Mas em qualquer dessas manifestações se tenta fixar em pontos detalhistas e ora com discussões muito teóricas misturando documentos da Igreja ora com fatos controversos que jamais seguirão a um acordo.
“interesse doentio por controvérsias e contendas acerca de palavras” (1 Timóteo 6,4)
O teólogo medieval Pedro, o Cantor, vê nessa passagem a reprovação dos teólogos de seu tempo, que discutiam pelo prazer de discutir, não para buscar a verdade, e tratavam a Palavra de Deus como qualquer das artes liberais ou como uma arte mecânica. Em um determinado período da Idade Média em que se proliferava discussões teológicas, muitos achavam que poderiam ir por essa via independente de uma experiência religiosa [1]. O mosteiro era uma escola de caridade, a serviço de Deus, de modo que guardavam uma certa reserva com relação a uma investigação intelectual fora desse quadro de caridade e humildade.
O conteúdo da fé católica a ser transmitido é muito rico para reduzir o apostolado a discussões e teorizações vãs que se repetem constantemente e não dão frutos: se a Santa Sé vai fazer alguma coisa sobre vários assuntos, ou qual rito da missa é mais verdadeiro ou o qual significado do Concílio Vaticano II, ou se Papa atual corresponde ou não ao cargo. Acabam fazendo disso a vivência da fé como se o catolicismo precisasse de discutidores ou passivos expectadores. Essas pessoas não têm nenhum plano ou iniciativa de evangelização ou catequese, são teóricos que acham que podem construir soluções para a Igreja Católica apenas a partir da sua combinação doutrinária como um moderno racionalista: “Sentado em meu escritório, posso criar leis capazes de regular qualquer sociedade humana” [2]. Uma mania de teorizar as coisas herdada em parte do iluminismo no qual “não precisava investigar a realidade das condições para os quais estava legislando ou o que as pessoas realmente queriam: bastava apresentar o que era racional, no estrito sentido iluminista do termo” [3].
A discussão doutrinária que se trava em ambientes, mesmo os virtuais, acaba criando bandeiras, grupinhos de identificação baseado em ser contra algo e não pela construção e assim dividindo mais ainda os católicos. Essa mentalidade de guerra não vem do evangelho. Cristo não veio para rivalizar com inimigos, mas para conquistar corações. E mais, para Cristo e Santos a denúncia do mal ocorre ao longo da missão. Esquecem que a tarefa do católico é levar à fé ao “católico de IBGE” e aos não evangelizados. Acabam criticando as iniciativas em que há manifestações mais subjetivas como a experiência emocional com Deus, revelações, moções e outros que falam ao coração. Esse conflito na massa dos fieis é um reflexo de acadêmicos ou vice-versa.
Ratzinger ao comentar sobre as faculdades de Teologia e o conflito que criam contra o magistério mostra que a discussões intelectuais teológicas não vão resolver a questão: “não é possível manter a Teologia nos limites da fé através de medidas disciplinares; a fé só pode vir de dentro: se crê com o coração, diz Paulo (Rm 10,10). A Teologia só é sã, criativa e virtuosa, quando a fé é viva. Todos os esforços dos pastores da Igreja, papas e bispos, devem tender a fazer com que o Evangelho possa ser perceptível ao “coração”, depois será entendido também pelo intelecto.” (Ser Cristão na Era Neopagã, vol. III, pag. 99). As pessoas creem se têm uma fé viva, as partes da discussão não podem competir para ver quem tem uma fé mais viva que a outra. Isso não é o evangelho, se desenvolve a fé viva praticando. Alguns católicos ao verem que a fé é uma virtude intelectual, acham que ela salta direto de um livro ou ensinamento da Igreja para o intelecto humano.
Muitas dessas contendas são originarias da falta de humildade. Segundo Tanquerey, uma das formas para praticar a humildade do espírito, além da humildade do coração e exterior, é a prática da docilidade intelectual. Submetendo-se não só às decisões oficiais da Igreja, mas também aceitando as orientações não infalíveis. Evitando assim obstinação pelas próprias ideias em pontos controvertidos. A curiosidade também é uma das responsáveis que não pode ser confundida com busca sincera do conhecimento. Enquanto a busca sincera está disposta na direção a uma verdade espiritual que acrescente uma riqueza mesmo que use alguma curiosidade no começo, a curiosidade acaba se dispersando sem nenhum ganho para se somar à riqueza da sabedoria.
[1] Leclercq, Jean, O amor às letras e o desejo de Deus, pg 247, Paulus.
[2] Diane Moczar, A Igreja sob ataque: Quinhentos anos que dividiram a Igreja e dispersaram o rebanho, pg 76, Ecclesiae, 2021
[3] Ibidem