A chegada ao poder do novo ministro da Saúde do governo Lula, José Gomes Temporão, passaria sem alarde pelos cadernos de política da imprensa brasileira. Sem ter histórico político, tem no currículo grande méritos como técnico de saúde, inclusive à frente do Instituto Nacional do Câncer, em 2003. Seria mais um profissional respeitável a ser escalado para solucionar os graves problemas de saúde pública do país. No entanto, ao assumir o novo cargo, o ministro resolveu ressuscitar uma velha (e importantíssima) questão que divide os brasileiros e provoca debates calorosos no seio da sociedade e na mídia mundial: a legalização do aborto.
Com base em dados alarmantes, segundo os quais o número de abortos clandestinos realizados no Brasil estaria em franco crescimento, ele defende que a questão da interrupção da gravidez é uma questão de saúde pública e, necessariamente, deveria receber maior atenção governamental e uma revisão da legislação a respeito do assunto.
Segundo a pesquisadora Ana Maria Costa, realizada em 2002 e abrangendo 95% dos municípios brasileiros, o número de abortos clandestinos seria da ordem de 1 milhão por ano, transformando-se na 3ª maior causa de morte materna do país e um custo aos cofres públicos de R$ 35 milhões, gastos nos atendimentos às complicações surgidas nos procedimentos malfeitos. Os nervos se acenderam e várias correntes se levantaram em defesa e em acusação ao ministro, tendo como base a proteção legal à vida, já consagrada na Constituição Federal de 1988 e no Código Penal. Contrários às determinações legais, os que apóiam a descriminalização entendem que o aborto é um direito da mulher e que a vida não começa na concepção, e sim com o desenvolvimento do sistema neurológico. Ferrenha crítica dessa posição, a Igreja, fincada nos princípios éticos e religiosos relegados a ela pela pessoa de Cristo, viu-se, mais uma vez, taxada de porta-voz do conservadorismo. Como já aconteceu em outros países, como no caso da Itália, a Igreja foi a campo defender a primazia da vida como valor absoluto, inalienável e indiscutível, e que deve, sim, ser albergado pela legislação, em confronto aos que relativizam o ser humano na sua dignidade toda especial.
Declarar que o destino dos fetos é um direito inviolável das mães é um absurdo, haja vista que a vida é dom doado por Deus a cada um de nós e não pode ser objeto da arbitrariedade de ninguém; é, portanto, direito de cada ser humano gozar da plenitude da existência por ser ela bênção de Deus pra a exaltação de Sua Graça. No entanto, a relação existente entre mãe e filho, usada aqui para a celebração da cultura de morte, deve ser, ao contrário, medida de valorização da vida. E é justamente por isso que a imagem que me vem à cabeça quando tocam na questão do aborto é a de Maria com seu filho divino nos braços.
Vejamos o que nos diz o Evangelho de Mateus: “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi e o nome da virgem era Maria. Entrando, o anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo. Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação. O anjo disse-lhe: Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus” (1, 26-31). Maria era e é a cheia de graça, não por nenhum mérito seu, mas por ser ela aquela que portou no próprio seio o Salvador do mundo. A graça de Deus inundou-lhe o seu coração e ela se viu absorvida em Sua Misericórdia. Era pobre, muito jovem, tinha a serena sabedoria das coisas de Deus e aguardava ansiosamente a libertação de seu povo. Escolhida desde toda a eternidade para a missão que devia realizar, ela foi concebida sem pecado, e permaneceria para sempre pura e imaculada para exaltar as obras de Deus realizadas por seu intermédio. São Luís Maria Grignon de Montfort nos diz, em seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria: “Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria. Este grande Deus tem um tesouro, um depósito riquíssimo, onde encerrou tudo o que há de belo, brilhante, raro e precioso, até Seu próprio Filho; e este tesouro imenso é Maria, que o anjos chamam o tesouro do Senhor, e de cuja plenitude os homens se enriquecem”. Este tesouro encerrado em Maria é o próprio Jesus, o Verbo de Deus, que se faz homem para transfigurar a humanidade e resgatá-la de sua miséria. A graça da salvação dependia da aceitação de Maria, de que ela assumisse a missão que lhe estava resguardada – a missão de ser Mãe. Pela sua singeleza, não é difícil escolher Maria como exemplo de mulher, mas é necessário, para exaltar o dom da vida contra o qual se levantam discursos inflamados e uma ideologia que relativiza os valores absolutos dados por Deus, que se destaque o seu papel materno – mãe de Jesus, da Igreja, da humanidade inteira.
O Papa João Paulo II, na encíclica A Mãe do Redentor, ensina: “No mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes da criação do mundo’, como aquela que o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu filho na encarnação (...) Maria está unida a Cristo de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde toda a eternidade”. A dignidade de Maria repousa, principal e fundamentalmente, no seu papel de Mãe, haja vista que é acolhendo o dom da vida do filho que ela dá sua contribuição para a salvação do mundo e é colocada, a nosso favor, como medianeira de toda as graças que Cristo nos mereceu pela sua morte e ressurreição. Maria disse sim mesmo sem entender direito o desenrolar de toda a ação de Deus na sua vida; acolheu com fé e confiou em que Deus realizaria nela “maravilhas” (cf. Lc 1, 49).
O texto da Encíclica O Evangelho da Vida, o mesmo Papa João Paulo II nos diz que “a gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a vida (...) Está totalmente entregue á proteção e aos cuidados daquela que o traz no seio”. A maternidade é missão confiada a cada mãe e o filho que é gerado em seu ventre, bênção de Deus para a humanidade. Não importam, aqui, as condições em que este filho foi gerado e as conseqüências de seu nascimento para a vida da mãe e para a sociedade, haja vista que a sua vida (e o exercício pleno da mesma) é um direito irrevogável seu. Interromper a vida da criança sob a desculpa de que ela aumentaria o contingente de excluídos não é válida, posto que cabe aos poderes públicos garantir a dignidade da pessoa humana na sua integridade. Em relação a isso, o saudoso Papa nos diz, ainda que “a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam resguardar salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida mais digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente”.
O meio e as condições em que a criança irá nascer não são fruto de sua vontade, mas da falta de orientação sexual e afetiva e de maturidade dos pais, que o geraram prescindindo da responsabilidade de sua criação. Numa sociedade imersa cada vez mais no destempero sexual e na perda dos valores fundamentais da castidade e maturidade afetiva, os jovens se vêem no descaso e na inconseqüência nas suas escolhas pessoais. Não adianta nem mesmo o pesado investimento que o governo faz nas campanhas envolvendo os contraceptivos, igualmente condenáveis, haja vista que a sociedade (especialmente, a juventude) está se desajustando e decaindo na imoralidade e na falta de parâmetros morais. Para combater o crescente número de abortos no Brasil, seria melhor que o governo promovesse uma urgente reforma social, a fim de garantir a assistência total a essas mães e a seus bebês, bem como fazer uma ampla campanha de valorização da vida humana, fundamentada nos já citados textos legais.
E quanto à resposta de Maria? “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38). O “sim” de Maria nos permitiu contemplar as maravilhas de Jesus e a vida plena que ela nos alcançou pelo seu sacrifício. Maria exerceu (e exerce) plenamente o seu papel de Mãe, conduzindo-nos sempre no caminho da perfeição e da paz. Maria propiciou com seu “sim” a vinda de Jesus ao mundo e deu sua contribuição indelével para a nossa salvação. Ela deve ser, por causa disso, parâmetro para que tantas e tantas jovens mães, agraciadas com o dom da maternidade (em quaisquer circunstâncias, frise-se), possam, também elas, dar o “sim” à vida que carregam em seu seio, preferindo lutar para que seus filhos tenham uma vida digna a exigir que eles sejam extirpados de seus ventres. Que nós possamos pedir à Cheia de Graças, juntamente com o inesquecível Papa Wojtila ao final de seu Evangelho da Vida, que ela possa fazer “com que todos aqueles que crêem no vosso (seu) Filho saibam anunciar com desassombro e amor aos homens do nosso tempo o Evangelho da vida”.
BIBLIOGRAFIA
SEGATTO, Cristiane. Aborto: sim ou não?. Revista Época. São Paulo: Ed. Globo, n. 465, 19 abr. 2007, p. 82.
JOÃO PAULO II, Papa. A mãe do redentor. São Paulo: Paulinas, 2003.
MONFORT, São Luís Maria Grignon de. Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem. Petrópolis: Vozes, 2003.
Alessandro Lima. Apostolado Veritatis Splendor: Evangelium Vitae . Disponível em: http://www.veritatis.com.br/article/3692. Desde 20/6/2001.